Depressão de preços e demanda levará a um novo mundo do petróleo após a Covid-19

José Sérgio Gabrielli
Ineep

A combinação da acumulação dos vencimentos dos contratos vendidos com a brutal queda da demanda encontrou outro fator catalizador da crise

 

No início da semana, a notícia surpreendeu o mundo. Os preços do petróleo West Texas Intermediate (WTI), – negociado na Bolsa de Nova York e marcador dos outros preços do petróleo de grande parte dos países com relações econômicas com os EUA, – ficaram negativos, indicando que o vendedor estava pagando ao comprador para ele obter seu produto. 

Por trás disso estão tecnicalidades das operações do mercado futuro de petróleo, os brutais efeitos da crise de demanda provocada pela covid-19 e também ajustes de oferta decorrentes dos acordos OPEP+Rússia e contrações do Brasil, Noruega e EUA, o chamado grupo America+2.

A crise revela também vários problemas com os mecanismos de funcionamento do mercado de petróleo, um mercado essencialmente  relacionado à mobilidade de pessoas e cargas pelo mundo. O primeiro aspecto a considerar é a relação entre o mundo físico e o mundo financeiro, que agravou os efeitos das tecnicalidades do mercado. 

As datas de realização dos contratos vendidos – nos mercados futuros do petróleo WTI, os detentores do contrato receberão fisicamente os barris de petróleo ao preço acordado no dia do vencimento – para o mês de maio apresentaram um problema: não havia estocagem disponível e a troca física não pode ocorrer, devido a brutal queda da demanda. 

O primeiro aspecto a considerar é a relação entre o mundo físico e o mundo financeiro nas negociações. No mercado futuro, os detentores de determinado contrato recebem fisicamente os barris de petróleo apenas na data contratada, a um preço previamente acordado. Devido à brutal queda na demanda, o petróleo não teve saída e agora falta capacidade de estocagem nos Estados Unidos.

Os contratos para o mês de maio do petróleo tipo WTI, que exige entrega nos tanques ou dutos na cidade de Cushing, Oklahoma, venceram no último 21 de abril. Com isso, os detentores desses contratos se viram obrigados a trocar suas posições abertas (open interest) por posições compradas (offset). Então o que ficou negativo na verdade foi o preço de trocar o contrato vendido por comprado, com vencimento em maio, e não os próprios barris físicos do petróleo. Os contratos open interest, em que as transações ainda não foram completadas (antes da data do vencimento) envolvem volumes muitas vezes maiores que o volume físico transacionado diariamente, refletindo a determinação principalmente financeira dos preços do petróleo. 

A combinação da acumulação dos vencimentos dos contratos vendidos com a brutal queda da demanda encontrou outro fator catalizador da crise. Os mercados perceberam que dada a limitação dos estoques, os cortes da produção mundial não aconteceriam na velocidade necessária, mesmo com a retração das cargas processadas nas refinarias. Isso levou os operadores financeiros a minimizar suas perdas, aceitando preços negativos para compensar suas obrigações contratuais do mês de maio.

Para junho, os contratos já apresentam preços maiores e as expectativas para os preços do final do ano praticamente não se alteraram. O contango [cenário em que os preços futuros são maiores que os preços presentes] se acentuou. Nessa situação, vale a pena segurar os estoques físicos para vendê-los no futuro, a preços maiores. Por isso houve queda  dos preços das operações em cash em relação às operações contratuais para entregas nos meses seguintes. Esse desastre do mercado futuro abalou fortemente os mercados de ações. Empresas de petróleo foram especialmente penalizadas e algumas tiveram enormes perdas em valor de mercado. Algumas empresas médias do setor passam a ser alvos de aquisições hostis. Isso pode indicar uma nova onda de fusões e aquisições, o que levaria a uma reconcentração do setor, como ocorreu na década de 1980. Fundos Soberanos, empresas estatais e fundos abutres são os potenciais compradores.

O Brent, tipo de petróleo cujo preço é o principal marcador dos contratos da Europa e Atlântico Sul e tem entrega no Mar do Norte, também caiu. No entanto, como o Brent tem armazenagem em várias partes do mundo, a queda foi num nível muito menor que a do WTI. O diferencial Brent-WTI reflete as vantagens relativas do transporte transoceânico entre as produções de dentro e fora dos EUA. Em tempos normais, a queda do WTI levaria a um aumento das exportações dos EUA para outros países, já que o Brent estaria relativamente mais caro. Em tempos de Covid-19, isso não ocorreu porque as refinarias estão reduzindo suas operações em resposta ao colapso da demanda. Mesmo a preços mais baixos, não há compradores, porque não há armazenagem suficiente. 

A China, mais uma vez, sai na frente e está retornando mais cedo suas atividades de refino. Ao mesmo tempo, está elevando suas importações de petróleo para recompor suas reservas estratégicas, aproveitando-se dos preços mais baixos. No entanto, mesmo as compras chinesas têm limite. As refinarias do país, principalmente as estatais, têm contratos de longo prazo, não podendo substituir facilmente seus fornecedores. As privadas, chamadas teapot refineries  tendem a utilizar petróleo mais pesado, o que não faz delas um mercado alternativo para o WTI no curto prazo. Dessa forma, a China não seria um mercado para o petróleo WTI. A crise já se espraia até mesmo sobre o segmento de comercialização e logística. Em Singapura, um dos maiores traders do mercado asiático e proprietário da maior frota de super petroleiros do mundo – a Hin Leong Trading e a sua subsidiária Ocean Tankers – entrou em moratória como resultado da crise, além de algumas questões contábeis. 

A Rússia, por seu turno, procura garantir o mercado para seu petróleo, mesmo que tenha aderido ao acordo OPEP+. Fornecedora de dois terços do gás natural utilizado na Europa, seu interesse é principalmente com as cargas de gás natural liquefeito (GNL) de outros países, uma vez que a construção de novos gasodutos e terminais podem deslocar o gás russo, abrindo novas fontes de suprimento para o continente europeu. A leste, os russos buscam o mercado asiático, por meio do oleoduto ESPO de 4,2 mil quilômetros, que liga  a Sibéria Oriental aos mercados do Japão, China e Coreia, pelo do porto de Kosmino. 

Isso preocupa especialmente os sauditas, que se preparam para fazer o maior corte de sua produção. O anúncio dos Official Selling Prices (OSP) – tabela de preços para venda do petróleo da Arábia Saudita para entrega em maio – feito posteriormente ao acordo OPEP+, diminuiu pela metade os preços sauditas em relação aos níveis de abril. A guerra de preços entre Arábia Saudita e Rússia continua. 

E nos EUA, quais as alternativas? A produção americana, que revolucionou a oferta doméstica, transformando um país dependente do petróleo importado em um pais quase autossuficiente em apenas oito anos (2008-2016), exige investimentos permanentes, tecnologias de recuperação, perfuração constante e enfrenta declínio crescente, com custos mais altos do que os concorrentes internacionais. Com a queda dos preços depois de 2015, os pequenos e médios produtores do shale gas e tight oil aproveitaram as baixas taxas de juros e aumentaram seu endividamento, acreditando que a queda dos preços daquele ano seria temporária.

No entanto, a depressão dos preços continua e já provoca uma reação do sistema financeiro, que começa a assumir o controle de empresas petrolíferas que se encontram em extrema fragilidade financeira. Essas financeiras procuram manter a garantia dos fluxos de caixa, mas desprezam os investimentos necessários para a manutenção da produção física. Isso pode significar que muitas dessas operações nos EUA perderão a suficiente pressão dos reservatórios, afetando seus mecanismos de extração de petróleo, destruindo para sempre as possibilidades de continuidade da produção. 

O governo federal americano tem poucos instrumentos para intervenção doméstica. A principal delas é a imposição de tarifas alfandegarias para limitar as importações e manter os preços domésticos mais altos, sustentando assim a produção do pais. Além de politicamente difícil, esta medida seria relativamente ineficaz em uma situação de desastre na ponta do consumo, com tamanha queda na demanda. Por outro lado, do ponto de vista internacional, essa medida agravaria a competição dos outros países na disputa do mercado remanescente. Um cenário de maior competição internacional a fim de absorver uma produção já diminuída, e com menos compradores internacionais levaria a uma baixa ainda maior nos preços, agravando a crise do setor. 

Já no âmbito dos governos estaduais, especialmente nos do Texas e de Oklahoma, existe a possibilidade de as agências estaduais reguladoras colocarem limites à produção. Esses instrumentos existem, mas são mal vistos, por violarem princípios fundamentais da ideologia e das políticas neoliberais de redução da intervenção estatal nos negócios do petróleo. Por mais de quarenta anos estes instrumentos não são utilizados. 

Neste quadro, mesmo com enormes incertezas, algumas mudanças podem ser imaginadas: 

1. a geopolítica do petróleo muda, com o grande enfraquecimento da OPEP e uma crescente dependência do comportamento da demanda;
2. o protagonismo dos governos dos EUA, Rússia e Arábia Saudita aumenta no enfrentamento da crise, substituindo as forças de mercado e até a tecnoburocracia da OPEP. A política volta ao comando;
3. os mercados de petróleo físico e financeiro precisam mudar suas formas de funcionamento, achando novos marcadores de preços e novas institucionalidades nas relações entre contratos futuros e de entrega imediata;
4. o relatório das reservas provadas de 2020 sofrerá um grande impacto da desvalorização (impairment) dos reservatórios, que se tornarão economicamente inviáveis com os preços médios do petróleo deste ano, a não ser que a metodologia de sua mensuração seja alterada, como ocorreu em 2008;
5. a dinâmica e recuperação dos mercados vai depender ainda mais do que acontecerá com a China do que dos mercados da OCDE e;
6. há questionamentos sobre o modelo de negócios predominante nas grandes IOCs, integradas do E&P ao varejo, por sua terceirização e pouca presença na logística, por sua prioridade de retornos de curto prazo e nos investimentos em grandes projetos de difícil reversibilidade e sua crescente dependência do mundo financeiro. 

Um novo mundo do petróleo e um novo mundo pós Covid-19 terá de ser construído. Qual? Uma das primeiras questões é o que acontecerá com a transição energética, substituição dos combustíveis fósseis pelos renováveis. Com os baixos preços do petróleo, a transição das fontes primárias de energia se acelerará ou se retardará? Estado e mercado mudarão de papeis relativos na implementação das políticas nesse novo mundo.

(*) José Sergio Gabrielli de Azevedo é professor aposentado da UFBa, pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis Zé Eduardo Dutra (INEEP) e foi presidente da Petrobras.

Comentar