As guerras, o mundo em transição, o dilema europeu e o lugar do Brasil
Jornal dos Economistas
O ano de 2024 marca uma década do início da guerra entre Rússia e Ucrânia, e o mês de fevereiro completa dois anos do início da Operação Militar Especial russa contra a Ucrânia. Considera-se o início dos conflitos entre os dois países o ano de 2014, com a onda de violência na Ucrânia que depôs o presidente pró-Rússia Viktor Yanukovich e colocou no seu lugar um governo ultranacionalista, episódio conhecido como “Euromaidan”.
O acontecimento foi considerado a nova Revolução Laranja e teve como consequência a anexação da Crimeia pela Rússia e a primeira onda de sanções contra o país. Trata-se de um marco importante para o aprofundamento da chamada “virada a leste russa” e da parceria estratégica sino-russa, que são o core do projeto de integração eurasiática e da transição multipolar, e se desdobram na expansão da Organização para Cooperação de Xangai, na Opep+, no Brics+ e nas Novas Rotas da Seda.
Esse breve artigo tem por objetivo relacionar esse cenário de transição de poder mundial, suas principais consequências e dilemas para a Europa e as oportunidades para o Brasil nesse novo contexto.
A tentativa de entender a Guerra na Europa e o mundo atual e seus impactos deve levar em consideração esse conflito prolongado na Ucrânia. Ou ir mais longe, até o fim da Guerra Fria, a dissolução da União Soviética e do Pacto de Varsóvia, o compromisso de não expansão da Otan a leste e o início do mundo unipolar.
A chamada pax americana e o mundo unipolar colocaram as estratégias nacionais em função da geopolítica determinada por Washington. A fim de tentar entender os dias atuais, destacamos duas estratégias que nos levam às guerras do presente: na Europa, entre Rússia e Ucrânia; e no Oriente Médio, que inclui Gaza e as tensões com Irã e o Iêmen. Ambas as guerras geram fortes impactos sobre a Europa.
A primeira estratégia foi traçada por Nicholas Spykman e George Kennan e diz respeito ao cerco estratégico à Rússia. A ideia vem do pensamento geopolítico clássico de evitar uma aliança entre o poder terrestre e as bordas marítimas, da Rússia à Europa, particularmente a Alemanha. A solução seria um cordão de isolamento, estratégia traduzida na dissolução da União Soviética e na formação de pequenos Estados que pudessem ser atraídos para a influência ocidental.
A segunda é mais recente, se expressa na Guerra ao Terror, a partir de 2001, que tem por objetivo controlar o Oriente Médio e, sobretudo, seus recursos estratégicos. Ambas as estratégias geraram sucessivos conflitos, sejam guerras tradicionais, com uso do poder militar americano ou de seus aliados, seja outros tipos de guerras, como as chamadas guerras híbridas e as guerras econômicas.
Impactos das guerras sobre a Europa
No atual estágio da transição de poder mundial, pode-se perceber que a Europa vive fortemente os impactos desses conflitos, de diferentes formas. Ficou espremida entre a recuperação russa, a expansão chinesa e a luta pela manutenção do poder americano, com um papel coadjuvante e subordinado.
Não é objetivo deste artigo ater-se à expansão chinesa, mas é importante observar que a parceria sino-russa é um dos elementos centrais para entender a transição multipolar (ALVARES, 2020).
A projeção internacional russa é parte constitutiva da sua estratégia nacional, e por isso, os recursos energéticos russos são um importante instrumento de barganha da sua política externa. De acordo com Fiori, “os governos de Vladimir Putin e de Dmitri Medvedev lograram transformar o petróleo e o gás russos nos seus dois principais instrumentos de projeção do poder da Rússia, na Europa e na Ásia.” (FIORI, 2017).
Aproveitando-se do problema de segurança energética na Europa e da crescente necessidade de acesso aos recursos energéticos pelas potências asiáticas, a Rússia se posicionou na geopolítica dos dutos e buscou colocar-se como uma “ponte energética” (FIORI, 2017) na Eurásia. Atua para contrabalançar as iniciativas ocidentais de controle dos fluxos energéticos, em especial na Ásia Central e no Oriente Médio.
O Projeto Nabucco¹ e as disputas na região do Cáucaso exemplificam as investidas geopolíticas pelos recursos energéticos na região. O país chegou a garantir o controle do fornecimento do gás à Europa, materializado pela construção do gasoduto Nord Stream 2, o que representou uma vulnerabilidade para o continente e para a Alemanha, em particular, e um forte instrumento da política externa russa. Não à toa, o projeto foi alvo de boicote permanente pelos Estados Unidos e sofreu sabotagem em setembro de 2023.
As recentes resoluções envolvendo as metas para redução da emissão de gás carbônico na Europa estabelecidas pelo Acordo de Paris (2015) aumentaram ainda mais a demanda pelo gás natural, em detrimento de outras fontes mais poluentes.
Agora, com o conflito europeu, essa questão se tornou ainda mais latente, uma vez que se por um lado, explicita a necessidade de acelerar o desenvolvimento de novas rotas tecnológicas em direção à transição energética, por outro, fez a Europa retomar o uso de fontes fósseis, como o carvão, para garantir o abastecimento interno.
A dependência deixa a União Europeia em uma posição ambígua: por um lado apoiam as sanções contra a Rússia e por outro, dependem no curto prazo do país para o abastecimento de gás e para a garantia da segurança energética.
Desde pelo menos o marco decenal dos conflitos com a Ucrânia que derrubaram o presidente Viktor Yanukovich, a Rússia vem se preparando para não ter mais sua economia tão dependente do dólar americano e da Europa.
Dentre as medidas, destacam-se o desenvolvimento interno dos setores estratégicos, de um lado, a ampliação das relações com o Sul Global de outro, incluindo a diversificação das transações comerciais em moeda local, sobretudo no comércio dos seus recursos energéticos, a substituição de reservas internacionais em dólar para outras moedas e para reservas em ouro.
O estrangulamento imposto pelas sanções americanas que derrubaram a economia russa em 2014 e a iraniana em 2012 e 2018 não tiveram o mesmo efeito em 2022 e 2023, quando as sanções foram ainda mais intensas, incluindo a retirada da Rússia do sistema de transações internacionais (Swift). Pelo contrário, mostraram uma capacidade de resiliência que o Ocidente não foi capaz de prever.
O PIB russo caiu apenas 2,1% em 2022 e teve uma das taxas de crescimento mais altas do mundo em 2023, de 3,5%, e um crescimento industrial de 9,4% entre março e agosto de 2023. Além disso, o comportamento dos bancos surpreendeu ainda mais. Segundo o Banco Central do país, os bancos russos geraram 3,3 trilhões de rublos, o equivalente a 37 bilhões de dólares em 2023, um aumento de cerca de 16 vezes em relação a 2022. O FMI estima um crescimento de 2,6% para a economia russa no ano de 2024, segundo matéria do jornal Financial Times.
Assim, a grande prejudicada pelos embargos impostos com a Guerra na Ucrânia foi a Europa Ocidental, particularmente a Alemanha, que viu sua segurança energética comprometida com o fechamento do recém-inaugurado Nord Stream II, que ligava diretamente a Alemanha à Rússia pelo Mar Báltico.
Outro efeito da Guerra foi o abastecimento de produtos alimentares, atingindo a Europa como compradora de trigo e de óleo de girassol da Ucrânia. Sendo Rússia e Ucrânia grandes ofertantes mundiais de alimentos, em especial trigo, milho e fertilizantes, a guerra impactou fortemente a oferta mundial, provocando uma alta recorde dos preços em 2022, segundo o índice de preços de alimentos², medido pela FAO (Food and Agriculture Organization).
O índice atingiu 147 pontos, um crescimento de quase 50% em relação ao ano de 2020, puxados pelos preços dos cereais (incluindo milho e trigo) e pelos óleos vegetais, em especial o óleo de girassol, que a Ucrânia era a principal produtora.
Em 2023, os preços tiveram uma queda importante em relação ao ano anterior, atingindo 124 pontos (queda de 15,65%), patamar parecido com o ano de 2021, que contou com os impactos da pandemia. O Brasil, como grande produtor de alimentos, teve um papel importante para esse resultado, assumindo um aumento da produção de milho para exportação.
A guerra em Gaza
Agora, com o prolongamento dos ataques israelenses a Gaza, que já vitimaram mais de 24 mil palestinos desde outubro de 2023, a Europa se vê diante de um novo dilema humanitário e econômico. Tornou-se uma questão humanitária porque a desproporção da reação israelense, que já foi denunciada como genocídio pelo Tribunal Internacional de Haia, coloca os europeus na defensiva com relação à defesa dos direitos humanos.
E também se converteu em um problema econômico, pois em termos práticos, a reação do grupo Houthis em atacar embarcações mercantes e militares de Israel, Estados Unidos e Reino Unido, além de outras bandeiras, cria riscos para a navegação pelo Mar Vermelho.
A instabilidade nessa região faz com que muitas empresas optem por uma rota mais segura, contornando a África em detrimento do Canal de Suez. Essa escolha gera o encarecimento do frete internacional, uma vez que prolonga em cerca de 9 mil km a viagem. O Canal de Suez é a principal ligação da Europa com o Oriente por mar e responde por 10 a 15% do comércio mundial, incluindo as exportações de petróleo; e por 30% dos volumes globais de transporte de contêineres.
Para se ter uma ideia da importância desta rota marítima, a tabela 1 mostra o volume de petróleo e gás transportados anualmente pelo Mar Vermelho até o primeiro semestre de 2023, de acordo com dados da US Energy Information Administration³.
A guerra em Gaza também aumenta as tensões no Oriente Médio, podendo desencadear novos conflitos envolvendo importantes atores regionais, como o Irã, e levar a interrupção de novas áreas, como o Estreito de Ormuz, pressionando os preços internacionais do petróleo.
Novas oportunidades para o Brasil
O cenário de “caos sistêmico” descrito por Arrighi (2001) referindo-se às transições de poder, nesse caso da unipolaridade para a multipolaridade, deve ser visto também como uma oportunidade para que o Brasil encontre um novo lugar na hierarquia de poder global. O Brasil possui importantes vantagens comparativas, já que as seguranças energética e alimentar estão no meio desse jogo. É nosso desafio vincular esse potencial a um projeto de desenvolvimento nacional.
Além disso, o país já faz parte de importantes arranjos de integração regionais e multilaterais, como o Brics, o Mercosul e a Unasul, e agora a Opep+, tendo um papel de liderança regional e um expoente do Sul Global. Resta definir qual o interesse nacional brasileiro diante dessas oportunidades, para que nosso projeto não esteja, como o europeu tem estado, a serviço e subordinado ao interesse nacional de outras potências.
Nota
¹ O Projeto Nabucco visa transportar gás natural da Ásia Central para a Europa sem precisar passar pela Rússia; seria uma extensão de redes já existentes, em parceria com a Turquia. O projeto, contudo, não foi concluído e, ao contrário, a Turquia ampliou seu acesso ao gás através do gasoduto russo TurkStream.
² Disponível em https://www.fao.org/worldfoodsituation/foodpricesindex/en/
³ Os dados de petróleo estão em milhões de barris por dia e de gás estão em bilhões de pés cúbicos por dia.
Referências
ARRIGHI, Giovanni & SILVER, Beverly J. 2001. Caos e governabilidade no moderno sistema mundial. Rio de Janeiro: UFRJ-Contraponto. FIORI, J. L. (2017) O papel do petróleo e do gás no passado e futuro estratégico da Rússia. Disponível em https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/O-papel-dopetroleo-e-do-gas-no-passado-e-futuro-estrategico-da-Russia/7/38899,
ALVARES, T. O. (2020). Rússia e China: uma parceria estratégica em busca da multipolaridade. Dissertação de Mestrado, UFRJ, Rio de Janeiro, 2020. Disponível em https://www.ie.ufrj.br/images/IE/ PEPI/disserta%C3%A7%C3%B5es/2020/
Dsserta%C3%A7%C3%A3o%20Taciana%20 de%20Oliveira.pdf
Artigo publicado originalmente no Jornal dos Economistas.
Comentários:
Comentar
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.
Américas Golf Barra
Chega de guerras no mundo, da maneira que está, estamos caminhando para o fim do planeta