A atual crise dos preços mostra como é importante a regulação no setor de downstream

Rodrigo Leão
CartaCapital
A atual crise dos preços mostra como é importante a regulação no setor de downstream
A atual crise dos preços mostra como é importante a regulação no setor de downstream

Foto: Tomaz Silva / Agência Brasil.

Ao longo da década de 2010, a gestão dos preços dos combustíveis no Brasil se tornou alvo de grandes debates entre especialistas e a imprensa que cobre a indústria do petróleo. Primeiro, no final do primeiro governo de Dilma Rousseff, os preços foram administrados e “represados” durante cerca de dois anos, gerando críticas sobre os efeitos negativos dessa medida. A solução seria a adoção de um política de equalização dos preços internacionais com cotações internacionais, medida que foi imposta desde a gestão Pedro Parente. Quatro anos após aderir a essa política, as constantes altas e a maior volatilidade dos preços dos combustíveis no Brasil geraram novos questionamentos sobre eventuais equívocos dessa política.

 

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Tais críticas refletem um debate da literatura sobre a forma de regulação do setor de downstream. Na verdade, uma parte dos especialistas defende uma regulação mínima do segmento mais concentrada em regras para coibir comportamentos monopolistas e abuso de poder de mercado. Uma outra parcela defende uma regulação mais ampla, considerando não apenas esses aspectos, mas outros elementos como coordenação do mercado de abastecimento e da infraestrutura logística.

 

Os recentes aumentos de preços da Petrobras no diesel e na gasolina têm colocado em debate diferentes visões sobre a atual forma de reajuste da estatal, denominada de preços de paridade de importação (PPI). Essa política considera três fatores para reajustar o valor dos derivados de petróleo: (i) o preço de paridade com o mercado internacional – que inclui a cotação internacional do petróleo e de seus derivados, considerando a variação cambial; (ii) os custos logísticos como frete de navios, custos internos de transporte e taxas portuárias; e (iii) a margem para remunerar riscos inerentes à operação.

 

Como, desde maio de 2020, as cotações internacionais subiram significativamente e a taxa de câmbio se manteve desvalorizada, os valores dos derivados das refinarias da Petrobras seguiram a mesma tendência.

 

A adoção do PPI reflete, de certa forma, os choques de mercados da indústria internacional de petróleo e de seus derivados. Além disso, essa sistemática permite que os importadores possam concorrer com os produtos fabricados pela Petrobras. É por isso que, para os defensores do PPI, esses dois fatores impediriam a existências de distorções de mercado.

 

Os críticos, de forma geral, embora não desconsiderem a importância das cotações de petróleo, acreditam que o PPI negligencia três aspectos fundamentais para a definição dos preços dos derivados: (i) a capacidade de atendimento do mercado interno pela produção do país; (ii) a coordenação do mercado de distribuição e; (iii) a internalização da volatilidade do mercado internacional de petróleo. Esses especialistas enxergam que a regulação do preço não deve se restringir à concorrência e à praticas abusivas, como também considerar outros fatores. O número de refinarias existentes, o tamanho do mercado interno, a capacidade de atendimento da demanda pela produção nacional, a existência de terminais de importação são alguns desses fatores que devem influenciar na regulação dos preços, na avaliação desses especialistas.

 

Esse imbróglio mostra que não apenas os preços, mas de toda a cadeia de downstream (refino, distribuição e comercialização) tem uma complexidade regulatória muitas vezes ignorada por boa parte dos analistas do setor.

 

A cadeia de abastecimento se inicia com a produção de derivados de petróleo nas refinarias. A realização dessa atividade exige uma série de controles regulatórios que vão desde a autorização para operar uma refinaria até o controle da saída de produtos, passando pela definição de preços, pela segurança das operações, pelos impactos ambientais entre outros.

 

Todas essas atividades são reguladas por atores específicos e necessitam de seu aval para o funcionamento da refinaria. As segurança das operações, além da própria supervisão dos sindicatos, tem a fiscalização de órgãos reguladores ligados ao trabalho a fim de impedir que os funcionários sejam colocados em ambientes de risco e/ou insalubridade. Os impactos ambientais são monitorados por órgãos dessa área que visam reduzir a exposição a gases, produtos químicos que possam trazer efeito negativo para o meio ambiente. Ademais, o órgão regulador setorial precisa autorizar o funcionamento da refinaria, conferindo se todas as exigências técnicas e de mercado estão seguindo os padrões estabelecidos.

 

Isso também abrange as distribuidoras e os revendedoras de combustíveis. Todos esses segmentos podem gerar efeitos negativos para consumidores, funcionários e meio ambiente e, por isso, sua regulação também é necessária.

 

Além da parte operacional, há também um arcabouço regulatório para evitar concentração e abusos de mercado. De forma geral, existem órgãos de proteção ao consumidor, de defesa da concorrência que tentam proteger o segmento de práticas anticoncorrenciais que possam impedir o funcionamento do mercado e penalizar os consumidores por meio da elevação “excessiva” de preços ou com acesso a produtos de baixa qualidade. Esse aspecto da regulação é fundamental, uma vez que, na distribuição e comercialização, principalmente, as práticas de cartel, adulteração de combustíveis ocorrem com certa frequência.

 

Por fim, mas não menos importante, existe uma outra forma de regulação que se refere ao planejamento e coordenação do abastecimento. Esse aspecto regulatório pode variar significativamente de país para país, dependendo do tamanho do seu mercado, do número de atores existentes, da produção nacional de derivados, da malha de infraestrutura entre outros aspectos.

 

De forma geral, os países com grande mercado consumidor, poucos agentes atuantes e infraestrutura mais limitada necessitam de um rigoroso mecanismo de coordenação do abastecimento. Como nesses locais, há uma grande demanda por produtos e uma menor capacidade de fornecimento, a coordenação e planejamento são fundamentais. Caso contrário, há o risco de desabastecimento, imposição de preços abusivos, diferenciação regional de impostos entre outros aspectos.
Os países desse porte, mas com múltiplos agentes e infraestrutura mais abrangente, tem uma preocupação maior com a regulação da concorrência e menores exigências de planejamento. Ainda assim, eles costumam ter órgãos estatais que fiscalizam e monitoram o abastecimento para evitar a escassez de produtos e a continuidade de realização de investimentos em infraestrutura.

 

Países menores, de forma geral, tem uma preocupação com o planejamento do abastecimento que não é tão relevante. Para eles, a infraestrutura e o número de agentes para atender suas necessidades é relativamente menor e, por isso, não exige uma coordenação tão complexa em comparação a grandes mercados. Todavia, tais países podem demandar um planejamento e um regulação de abastecimento mais robusta para atender determinados objetivos como, por exemplo, reduzir o uso de combustíveis fosseis em certas regiões.

 

Todos esses aspectos mostram que a regulação no setor de downstream não é simples e, em poucos casos, restringe-se à esfera operacional e econômica. Isso também acontece com a regulação dos preços dos derivados. Existem diversas formas de gestão dos preços, dentre as quais as mais importantes são: (i) PPI ou instrumentos de paridade dos preços locais com preços externos; (ii) gestão dos preços com paridade flexível, ou seja, que usam não apenas os preços internacionais, mas outros indicadores como parâmetros e; (iii) controle restrito dos preços.

 

A experiência internacional mostra que o PPI, via de regra, é adotado por países que tem uma elevada dependência das importações de petróleo. Um exemplo é a Austrália que, em 2019, importava mais de 60% de todo o petróleo consumido no país.

 

Mesmo assim, alguns países, que são dependentes de importações e, logo, têm de seguir uma sistemática próxima ao PPI, adotam instrumentos para “regular” os preços que chegam aos consumidores. Na Áustria, por exemplo, para suavizar o repasse da oscilação internacional das importações ao consumo interno, uma das medidas mais famosas do governo austríaco foi proibir os postos de abastecimento de aumentar os preços da bomba mais de uma vez por dia. “Vigente desde 2009, a medida tem o intuito de proteger o consumidor final da volatilidade do petróleo, ao mesmo tempo que estimula a concorrência entre os revendedores, uma vez que o governo proíbe o preço de subir, mas não de cair”, mostra um estudo do Ineep realizado por Rafael da Costa e Isadora Coutinho.

 

A gestão flexível é mais adotada em países, cuja produção de petróleo atende (quase) integralmente seu consumo, todavia não são grandes exportadores, como é o caso da Dinamarca. Embora esteja caindo nas últimas décadas, a produção do país foi capaz de atender a 80% de sua demanda entre 2017 e 2019. Dessa forma, as empresas do setor petróleo e de energia se tornaram instrumentos importantes para regular o setor.

 

O país nórdico criou uma reforma fiscal para auxiliar na regulação dos preços dos derivados alterando as faixas de tributação segundo o valor do barril de petróleo. Em momentos de alta do barril, os impostos são reduzidos e o contrário também ocorre. Com isso, a tributação tem um papel contracíclico para o preço.

 

Nas regiões que são exportadoras de petróleo, há um controle muito rígido dos preços dos derivados, pois eles se aproveitam dessa condição para subsidiá-los. Nos momentos em que o barril do petróleo fica mais caro no mercado internacional, esses países que são exportadores aumentam seu ganho de divisas internacionais. Esse ganho “excepcional” auxilia essas nações a subsidiar os preços dos seus derivados.

 

A regulação, portanto, independente da forma que é implementada, sempre será um tema na importante na indústria de petróleo, não apenas nas etapas de produção, mas também em toda a cadeia de downstream.

 


 

Texto publicado originalmente na CartaCapital.

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