O papel do petróleo e do gás no passado e futuro estratégico da Rússia

José Luis Fiori
Carta Maior

“A emergência da Rússia como uma superpotência energética terá impactos de longo prazo sobre os Estados Unidos e sobre a diplomacia mundial, se não fosse por nenhuma outra razão, pelo simples fato de que nossos aliados europeus vão começar a pensar duas vezes antes de dizer “não” à Rússia”. M. Goldman, “Petrostate: Putin, Power, and the New Russia”, New York, Oxford University Press, 2008, p. 7.

Hoje existe um consenso entre os analistas de que a economia soviética viveu uma crise grave nos anos 80, mas não estava à beira do colapso, nem estava condenada a seguir o caminho que seguiu na última década do século XX. Apesar disso, segue existindo uma grande controvérsia com relação ao motivo que teria levado o estado soviético a optar – naquele momento – pela sua autodestruição. Alguns historiadores sublinham a importância de antigas divergências e lutas internas do partido comunista e da burocracia soviética, mas outros culpam a ofensiva militar e as sanções econômicas do governo Reagan, que teriam atingido em cheio a produção e exportação de petróleo e do gás, os principais responsáveis pelo financiamento externo da economia russa.

 

 

 

Seja como tenha sido, no dia 25 de dezembro de 1991, a URSS autodissolveu-se, e uma parte dela veio a constituir a atual Federação Russa, que foi governada, até o dia 31 de dezembro de 1999, pelo presidente Boris Yeltsin. Durante esta década, Boris Yeltsin adotou o novo ideário neoliberal, que era hegemônico no mundo capitalista desde a década de 80, decidiu mudar a política externa da Rússia, aproximando-se das potências ocidentais e abandonou qualquer pretensão russa à condição de “grande potência”, permitindo a desorganização de suas FFAA – Forças Armadas Russas – e o rápido sucateamento do seu arsenal atômico.

 

Por outro lado, do ponto de vista econômico, liderou uma das experiências mais radicais de aplicação das “terapias de choque” neoliberais, concebidas no final do século XX, para transformar – de forma rápida – economias de planejamento central ou desenvolvimentistas, em economias de mercado, abertas e desreguladas. Com esse objetivo, no próprio ano de 1991 e antes mesmo do fim da URSS, Yeltsin encomendou a seu vice-primeiro ministro Yegor Gaidar, a elaboração de um plano de transição econômica que foi formulado em conjunto com vários economistas e banqueiros estrangeiros que já haviam participado da experiência pioneira de liberalização da Polônia.

 

A “terapia de choque” desenhada por esse grupo e implementada pelo governo Yeltsin, propunha quatro “reformas” fundamentais: a da privatização do setor público; da abertura e desregulação dos mercados; da liberação dos preços e da política de controle fiscal e monetário. Os resultados econômicos desta experiência terapêutica foram rápidos e desastrosos, e suas consequências sociais foram profundas e catastróficas.

 

Para que se tenha uma ideia do que aconteceu, recém no ano de 1994 já haviam sido privatizadas cerca de 70% de todas as empresas estatais russas, incluindo a “joia da coroa”, o setor produtor de petróleo e gás, que foi desmembrado e privatizado a partir de 1992. Atendendo os objetivos do plano de Gaidar, o setor privado da economia russa cresceu, de 10 % em 1990, para 70% do PIB em 1998, enquanto se realizava uma liberação dos preços e uma abertura e desregulação dos mercados, quase instantânea. Mas, como resultado desta “destruição liberal”, o crescimento do PIB foi negativo durante todos os anos da década, com exceção de 1997, o investimento total da economia caiu 81%, a produção agrícola despencou 45% e o PIB russo caiu mais do que 50%, com relação ao seu nível de 1990.

 

Paralelamente, a liberalização dos preços e a abertura abrupta da economia provocaram uma quebra generalizada da indústria russa, e um verdadeiro “choque” de empobrecimento e desemprego entre seus assalariados: o salário real da população caiu 58%, o número de pobres cresceu de 2% para 39% e, finalmente, o coeficiente de Gini (que mede o nível de desigualdade), que era de 0,2333 em 1990 passou para 0,401, em 1999.

 

Por conta destes resultados, muitos analistas se referem a esta experiência russa da década de 1990, como um caso paradigmático de “capitalismo selvagem”, que chegou ao seu fim de linha com a crise financeira de 1998, quando ocorre a gigantesca fuga de capitais privados que explica, em grande medida, a inflexão estratégica iniciada no ano 2000 pelo governo eleito de Vladimir Putin .

 

De forma quase simétrica e inversa, a administração Putin respondeu ao caos provocado pela crise financeira de 2008, com uma estratégia de recentralização do poder do estado, de reorganização e modernização das Forças Armadas, e de reversão da política liberal do período anterior. Logo no início do seu primeiro mandato, Vladimir Putin redefiniu a política econômica e a política externa russas, colocando-as a serviço da reconstrução industrial do país e da retomada de sua condição tradicional de “grande potência”. E, uma vez mais, construiu a sua nova estratégia a partir da reorganização do setor energético da economia russa, com a renacionalização de uma parcela significativa da sua produção e distribuição do petróleo e do gás.

 

A estatização da empresa petroleira Yukos, em 1993, foi o pontapé inicial desta remontagem do setor produtivo estatal, e de sua liderança da economia russa, através de suas grandes empresas de produção, transporte/distribuição e exportação de gás e petróleo: a Gazprom, a Rosneft, a Transneft e a Gazpromexport. A partir deste momento, com a ajuda dos preços internacionais do petróleo e do gás, a economia russa se recolocou de pé, e passou a crescer à uma taxa média anual de 7%, entre os anos 2000 a 2010, e depois disso seguiu crescendo, ainda que à taxas menores, até o início dos conflitos da Ucrânia e da Criméia, no ano de 2014. Logo na sequência, a economia russa entra em recessão, sob o impacto das sanções econômicas impostas à Rússia pelos EUA e seus aliados europeus, e graças à queda dos preços internacionais do petróleo, que vão de U$ 130 por barril até a crise de 2008, para cerca de U$ 30, no ano de 2016.

 

Assim mesmo, nos anos de sucesso, os governos de Vladimir Putin e de Dmitri Medvedev lograram transformar o petróleo e o gás russos nos seus dois principais instrumentos de projeção do poder da Rússia, na Europa e na Ásia. Aproveitando-se, em grande medida, da dependência energética da Europa Ocidental, que consome atualmente cerca de 2/3 de todo o gás exportado pela Rússia, e que deverá estar importando, em 2030, cerca 80% do seu gás e 93% do seu consumo de petróleo, a maior parte fornecido pela Rússia, segundo projeções da própria União Europeia. Foi assim que, em poucos anos, a Rússia conseguiu reconquistar sua condição de grande potência europeia e vem reestruturando paulatinamente a sua velha “zona de influência”, na Ásia Central, em algumas áreas da Europa do Leste, e no Oriente Médio, transformando-se ao mesmo tempo, numa “ponte energética” indispensável, entre a velha Europa e o “novo mundo” asiático.

 

As novas sanções econômicas impostas à Rússia pelas “potências atlânticas”, a partir de 2014, devem provocar problemas e mudanças de médio e longo prazo na economia russa, mas não é provável que venham a ter os mesmos efeitos que tiveram na década de 80 do século passado. Porque hoje a economia russa também é uma economia capitalista de mercado, e está cada vez mais integrada e “protegida” pelo dinamismo da economia chinesa. Além disso, como já vimos, conta com a dependência crescente dos próprios europeus, com relação ao seu fornecimento energético. Nesse sentido, a maior incógnita com relação ao futuro da Rússia esteja noutro lado: na incerteza com relação à possibilidade de sucesso – no longo prazo – de uma estratégia econômica que se proponha construir uma liderança econômica e tecnológica liderada por setores de alto valor agregado, a partir da exportação – sobretudo – de recursos energéticos.

 

De qualquer maneira, a experiência russa destas últimas décadas deixa duas lições que deverão ter um impacto importante no desenvolvimento da conjuntura internacional: uma, sobre a eficácia dos “choques liberais” em países de grandes dimensões; e a outra, sobre a melhor forma de utilizar os recursos naturais como instrumento de projeção do poder econômico e político de um país que detenha grandes reservas de petróleo e gás, como é o caso da Rússia:

 

Com relação ao uso das “terapias de choque” neoliberais, em países extensos e populosos, com grande desigualdade social e territorial, a experiência russa ensina que eles são altamente ineficientes do ponto de vista econômico, e absolutamente desastrosos do ponto de vista social. E, por isso mesmo, tendem a provocar reações ou respostas nacionalistas e protecionistas mais ou menos imediatas, como ocorreu na Rússia, mas também na Índia, e mesmo na Polônia, e como deverá ocorrer no Brasil, muito mais cedo do que tarde.

 

Com relação à reorganização estratégica do setor do petróleo e do gás, ocorrida na Rússia, durante os governos Putin e Medvedev, ela não envolveu a estatização total do setor nem muito menos, a exclusão do capital estrangeiro. O que ela fez foi submeter o capital privado nacional e estrangeiro à direção da “grande estratégia” do estado russo, operada, sobretudo, pelas suas empresas Gazprom, Rosnef, Transneft e Gazpromexport. Ou seja, o fundamental é que todas as mudanças que foram feitas, e todos os atores envolvidos passaram a obedecer – de uma forma ou outra – o mesmo objetivo estratégico de reestruturação e fortalecimento da economia russa, e de projeção geopolítica e geoeconômica do poder internacional da Rússia.

 

Artigo publicado originalmente em Carta Maior.

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