Guerra comercial, petroleiros piratas e o vazamento de óleo na costa brasileira
A guerra comercial e as sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos sobre o Irã e a Venezuela caminham no sentido de obstaculizar a presença desses países no comércio exterior e nas finanças internacionais, as indústrias naval e petrolífera têm sofrido o impacto dessas medidas de formas mais aguda por meio da retaliação à circulação de seus navios petroleiros.
Como se tratam de países com níveis significativos de reservas, produção e exportação de petróleo, as rotas para a circulação de navios-tanques têm sofrido com o aumento no valor do frete, que pode chegar a US$ 12 milhões para um trecho entre Caracas e Xangai.
Esse aumento de custo logístico provoca o crescimento do número de navios-tanque trafegando em alto mar sem rastreamento. É cada vez mais recorrente a prática de se desligar os transmissores para que os navios não possam ser rastreados por satélite a fim de burlar as barreiras e tarifas. Trata-se da modalidade off transponder que configura uma verdadeira frota crescente de “petroleiros piratas”.
No caso do Irã, as rotas de abastecimento marítimo de petróleo têm registrado um número cada vez maior de casos de sistemas de localização desligados ou de transmissões de informações falsas sobre as cargas transportadas. Em entrevista recente, quando questionado sobre o uso de táticas de “vendas secretas” por meio de “navios invisíveis”, o ministro iraniano do petróleo, Bijan Namdar Zangeneh, sem negar ou condenar esse tipo de prática respondeu: “usamos qualquer método, fazemos o nosso melhor para exportar petróleo e não nos rendemos perante sanções. Todos os métodos são bons aqui. Exportar petróleo é o nosso direito legal”.
Caso da Venezuela
No caso da Venezuela a situação é ainda mais dramática, as sanções se estenderam para o embargo dos ativos da petrolífera PDVSA no exterior, levando o país a enfrentar uma maré negativa de redução dos investimentos, sucateamento de portos, encerramento de operações em terminais e engarrafamento de navios no Mar do Caribe. Esse conjunto de impactos levou o país a estimular o abastecimento de navios fora dos portos, em alto mar, na modalidade ship-to-ship (navio a navio), o que aumenta os riscos de vazamentos e derramamentos. A angolana Sonangol Kalandula foi a primeira petrolífera a utilizar um navio-tanque carregado de petróleo venezuelano no modo navio a navio.
Diante desse cenário as mais diversas empresas navais e petrolíferas têm se utilizados das estratégias de mercado acima descritas. A chinesa COSCO Shipping Taker, que presta serviços de transporte para as petrolíferas CNOOC e Sinopec, teve cerca de um terço dos seus petroleiros trafegando com transponders desligados. A inglesa Fendercare Marine, que presta serviços logísticos para as petrolíferas Shell e BP, ampliou o número de operações de carga e descarga navio a navio.
As novas táticas empresariais de transporte e logística marítima (off transponder e ship-to-ship), que decorrem das novas estratégias nacionais de guerra comercial (com sanções e embargos), podem ter alguma relação com o recente caso de vazamentos ou derramamentos de óleo que atingiu a costa do nordeste brasileiro.
A catástrofe ambiental tem proporções consideráveis. Até o dia 23 de outubro já eram nove estados atingidos, em mais de 75 municípios e mais de 180 pontos identificados com manchas de óleo cru, em uma faixa de mais de 2.250 km de costa litorânea. São 201 praias afetadas e mais de 900 toneladas do material já foram recolhidas. O impacto ambiental, social e econômico ainda é incalculável, o mesmo vale para os custos de limpeza e descontaminação para os cofres públicos.
Hipótese improvável
Os primeiros apontamentos indicaram, em uma primeira hipótese, que o óleo pode ser de procedência venezuelana. ao contrário do que sugeriram os mais apressados, entretanto, é muito improvável que as machas de óleo tenham descido diretamente da Venezuela em direção ao Brasil. primeiro, porque a região é impactada pela Corrente Marítima da Guiana que orienta a maré no sentido contrário ao das manchas; segundo, porque a exploração e produção de petróleo venezuelano é fundamentalmente onshore (em terra) e não offshore (em mar); terceiro, porque as manchas aparecem primeiro no litoral maranhense, e não nas costas do Suriname, das Guianas ou do Amapá.
Esses indícios aumentam a probabilidade de que o problema esteja relacionado não à produção, mas sim à circulação de petróleo. Nesse sentido, considerando uma segunda hipótese, merece destaque a possibilidade de que o crime ambiental esteja ligado a um outro acidente. nas costas de Sergipe e Alagoas foram encontrados recentemente tambores, bombas, frascos e alguns barris com a inscrição “Argina S3 30”, que identifica um óleo lubrificante da Shell cuja origem também pode ter relação com o DNA do óleo encontrado nas manchas que contaminam a costa brasileira.
Disso não resulta, entretanto, que a petrolífera anglo-holandesa seja a imediata responsável. Há que se considerar ainda uma terceira hipótese, a de que o óleo seja de compradores da Shell: estão sob monitoramento as empresas transportadoras Hamburg Trading House FZE e Super-Eco Tankers Management.
Se o vazamento tiver acontecido durante uma transferência clandestina de óleo entre navios não é possível saber se a quantidade encontrada é a total ou se ainda há mais óleo por aparecer. Isso porque a capacidade de um tanque de navio-petroleiro pode ser de cerca de 3 mil toneladas de óleo. Além disso, em contato com a água o material pode entrar em processo de emulsificação e aumentar o seu volume em até quatro vezes, chegando a 12 mil toneladas, sem considerar a absorção de areia que pode torná-lo ainda mais pesado.
Em suma, apesar de, em um primeiro momento, o governo brasileiro ter tentado responsabilizar a exploração e produção de petróleo, a PDVSA e a Venezuela, o mais provável é que o problema esteja relacionado ao transporte e logística de petróleo, a empresas de navios-tanque, e, em última instância, à guerra comercial iniciada pelos Estados Unidos, país para o qual, em certo sentido, o Brasil terceirizou a proteção e a fiscalização marítima quando aceitou diminuir investimentos da Marinha e acatar a reativação da IV Frota Naval USA para o monitoramento do Atlântico Sul. Curiosamente, o mesmo governo que no episódio das queimadas amazônicas acusava as ONGs e a sociedade civil de atuarem contra interesses nacionais agora conta com o apoio dessas mesmas instituições para conter o vazamento que ele não consegue explicar e tampouco solucionar.
Sendo assim, para além da causa do vazamento, é importante notar como esse desastre evidencia a falta de condições do Ibama e da Marinha para prevenir, monitorar, fiscalizar, investigar e apurar esse tipo de problema. O desmonte das políticas de meio-ambiente e de defesa colocam em risco o nosso meio-ambiente, nossas águas e nossos recursos naturais estratégicos.
William Nozaki é professor de ciência política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e diretor-técnico do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (Ineep).
Texto publicado originalmente em Le Monde Diplomatique.
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