Baixa de preço reconfigura o papel dos EUA na geopolítica do gás natural

Rodrigo Leão
Broadcast Energia
Imagem na cor azul escuro, com o logotipo do Ineep ao centro.

O uso da tecnologia de fraturamento hidráulico (fraking) alterou radicalmente a posição dos Estados Unidos no mercado global de gás natural nos últimos anos. Do ponto de vista interno, o shale gas, extraído por este método, garantiu uma maior soberania no fornecimento de insumos energéticos e possibilitou que os Estados Unidos se tornassem, depois de décadas, um país superavitário na balança comercial de produtos energéticos. Do ponto de vista externo, os americanos passaram a exercer uma nova influência na indústria internacional de gás natural. Com a expansão da produção do gás natural sob a forma liquefeita (LGN), o país pôde alavancar suas exportações principalmente para a Europa e Japão, provocando uma elevação das suas tensões com a Rússia.

 

Todavia, a derrubada dos preços do petróleo e gás natural por conta dos efeitos da pandemia da Covid-19 pode frear essa estratégia de reposicionamento americano no mercado global de gás natural. Os preços baixos comprimiram as margens de rentabilidade de muitos produtores de shale gas dos Estados Unidos e inviabilizaram sua produção no médio prazo. Por isso, a evolução dessa variável é fundamental para a reconfiguração da geopolítica do gás natural.

 

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De 2009 a 2019, a produção de gás natural dos Estados Unidos cresceu 65,2%, saltando de 557,6 bilhões m³ para 920,9 bilhões de m³, de acordo com dados da British Petroleum (BP). Tal expansão se deveu, em grande medida, ao fracking. Segundo a Agência de Energia Americana (EIA, na sigla em inglês), no mesmo período, a produção exclusivamente de shale gas subiu de 88,1 bilhões de m³ para 716,1 bilhões de m³. Com efeito, a participação do shale gas na produção de gás natural no país saiu de 15,8% em 2009 para 77,8% em 2019.

 

O boom do shale gas tornou os Estados Unidos autossuficientes no atendimento do seu consumo de gás natural. Esse aspecto, ao lado do rápido desenvolvimento da infraestrutura de LGN, possibilitou que, desde 2017, as exportações americanas de gás natural superassem suas importações. A balança comercial de gás natural (em estado bruto ou industrializado), que era deficitária em US$ 13,1 bilhões em 2009, passou a ser superavitária em US$ 20,4 bilhões em 2019.

 

A reversão da posição de importador para exportador líquido possibilitou a montagem de uma estrutura de produção flexível que pode torná-lo o principal player do mercado mundial de gás natural. Isso porque o LGN permitiu uma maior flexibilidade do ajuste de sua produção às flutuações de preços, o que não ocorre com a produção tradicional, seja do gás associado, seja a produção dos grandes reservatórios de gás não associado. Não por acaso, os Estados Unidos têm realizado gigantescos investimentos em terminais de exportações de LGN nos últimos anos.

 

Até 2018, o país possuía somente três terminais (Kenai no Alaska, Sabine na Lousiana e Cove Point em Maryland). No último biênio, foram inaugurados mais quatros terminais, dois no Texas (Corpus Christi e Freeport), um na Lousiana (Hackberry) e outro na Georgia (Elba Island). Para os próximos anos, já foi aprovada a expansão de quatro desses terminais (Sabine, Corpus Christi, Hackberry e Elba Island) e está em construção mais três, dois na Lousiana e outro no Texas.

 

As perspectivas são de que, a partir de 2040, as exportações de LGN originárias dos EUA superem aquelas realizadas via gasodutos para o México e Canadá. Segundo reportagem do The Guardian, mais da metade da produção adicional de shale gas deve ser transformada em GNL para venda a terceiros.

 

A disputa por acessar os grandes compradores mundiais somada à redução das importações americanas tem dado aos Estados Unidos um novo papel na geopolítica do gás natural energético. Um dos principais efeitos desse processo é a entrada do LGN americano no mercado europeu e japonês, cujas importações eram até então dominadas pelos russos.
A entrada das exportações dos Estados Unidos na Europa e no Japão criou um processo de “competição e cooperação” entre esses atores e a Rússia, segundo os especialistas Jesse Richman e Nurullah Ayyılmaz da Old Dominion University. Os dois autores elaboraram um estudo que avalia o impacto das exportações americanas de LGN para o mercado europeu e possíveis efeitos na indústria de energia da Rússia.

 

Não há expectativa de o LGN americano assumir um papel protagonista no fornecimento de gás natural para a Europa, mas ele assegura à região uma diversificação na oferta. Os especialistas sugerem que os ganhos da segurança energética europeia com a expansão das exportações de gás dos Estados Unidos prejudicam as condições do mercado liberalizado em função da “disputa” protecionista que deve ocorrer à medida que os americanos deslocarem grandes produtores, como a Rússia.

 

“Apesar do papel crescente dos Estados Unidos, a Rússia mantém uma posição poderosa. O custo marginal do gás russo fornecido por dutos é inferior ao custo do GNL importado pelos EUA e, talvez, só não seja tão competitivo quanto o gás do Qatar e LGN nigeriano, por conta dos custos de transporte mais elevados determinados pela alíquota, embarque e regulamentação”

destacam Richman e Ayyılmaz.

 

Em 2019, as exportações de LGN dos Estados para a Europa totalizaram 18,3 bilhões de m³ enquanto as da Rússia 20,5 bilhões de m³. Evidentemente, quando se considera as exportações por gasodutos, os russos ainda têm grande predomínio no fornecimento de gás natural para a Europa. No ano passado, a Rússia respondeu por 59% das exportações desse insumo energético para o mercado europeu. No entanto, é importante ressaltar que, até 2016, os Estados Unidos não exportavam LGN para o continente europeu e, em 2019, já conseguiram uma parcela de 8,8% deste mercado.

 

Isso indica uma estratégia agressiva dos Estados Unidos de ingressar na zona de fornecimento de gás natural para a Rússia. Os investimentos em terminas de exportação de LGN e na “industrialização” do gás, o crescimento da produção americana de shale gas e as medidas de apoio do governo americano sugerem que os Estados Unidos redefiniram sua posição geopolítica, pelo menos no médio prazo, buscando aumentar sua penetração global no fornecimento do energético.

 

Todavia, essa posição pode ser ameaçada pela trajetória dos preços do petróleo e gás natural nos próximos anos, que impõe grandes restrições à indústria do shale gas, como observado durante a pandemia da Covid-19. Com a queda da cotação para a casa de US$ 40 por barril, boa parte da produção americana é inviabilizada, já que o custo de extração com o uso da tecnologia de fracionamento hidráulico gira em torno dos US$ 50 por barril.

 

Esse novo cenário de baixa favorece especialmente a Rússia, diante do enfraquecimento do concorrente mais ameaçador à sua hegemonia na Europa. Caso os preços permaneçam nesse patamar, não há no horizonte, portanto, a perspectiva de o país retroceder na disputa com os maiores produtores mundiais pela manutenção dos baixos patamares de preços e da sua posição de destaque na geopolítica do petróleo e gás. Nem mesmo a tecnologia avançada, que tanto ajudou os Estados Unidos nesta década, é capaz de fazer frente à disputa geopolítica pelos preços do petróleo e do gás natural.

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