África do Sul: rica e desigual enfrenta mais desafios na transição energética

José Sérgio Gabrielli
Brasil de Fato
África do Sul: rica e desigual enfrenta mais desafios na transição energética
África do Sul: rica e desigual enfrenta mais desafios na transição energética

Foto: Kelly Lacy / Pexels.

A África do Sul fica fora do radar da atenção dos brasileiros. Lembramos de Nelson Mandela e da luta contra o apartheid, além das vuvuzelas, nos estádios da Copa do Mundo de 2010. Mas, a África do Sul continua como um dos países mais desiguais do mundo, apesar de sua imensa riqueza. O país é o maior produtor e exportador de ouro, platina, cromo e manganês, o segundo em paládio e o quarto em produção e exportação de diamantes. É o sexto maior produtor mundial de vinho e o maior produtor africano de milho e açúcar. Possui um sofisticado mercado financeiro, entre os vinte maiores do mundo e uma indústria diversificada, correspondendo a um quarto do PIB do país, liderando mundialmente setores como veículos ferroviários, combustíveis sintéticos, equipamentos de mineração e máquinas especiais. A agricultura emprega menos de dois por cento da força de trabalho.

 

 

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No entanto, a África do Sul apresenta uma taxa de desemprego que beira os 35% da força de trabalho em 2020, sendo muito maior entre os jovens e os negros, que se libertaram do apartheid, mas continuam vivendo em condições extremamente desiguais no país.

 

 

Do ponto de vista energético, apesar de indícios de reservatórios de petróleo nas bacias de águas rasas de Outeniqua e Durban, na costa leste do Mar Índico, a África do Sul não se destaca como produtora de petróleo. É, entretanto, importante produtora de carvão, que é sua principal fonte de eletricidade.

 

 

O quadro mostra a desigual distribuição da eletricidade no mundo, com as imagens noturnas de satélites, que revelam a pouca cobertura elétrica da África, apesar das pequenas luzes na África do Sul.

 

 

Distribuição da eletricidade no mundo e rede de distribuição de energia da ESKOM / Arquivo/NASA/ CADTM

 

 

A principal empresa de eletricidade do país é a estatal Eskom, que vive serias crises financeiras e de gestão. O país tem tido sucessivos apagões e a dívida da empresa compromete as finanças publicas. A rede de distribuição da energia é muito precária e o acesso é muito difícil em várias regiões do país. Cerca de 40% de toda a energia gerada é consumida por 30 grandes empresas mineradoras e metalúrgicas.

 

 

Do ponto de vista ambiental, a produção de eletricidade no país tem efeitos muito danosos, pois a sua fonte primária é o carvão. A África do Sul tem uma das maiores participações do carvão como fonte primária de energia na composição de sua matriz energética do mundo, com 76% de sua energia primária, em 2017, comparada com 27% da média do resto do mundo. A energia solar e a eólica representam menos de 2% da geração elétrica do país cujos projetos sofrem forte oposição dos sindicatos, que defendem um modelo de geração descentralizada, sob comando das comunidades, e não os projetos controlados pelos fundos financeiros.

 

 

Apesar disso, o futuro não parece apontar para uma redução dessa dependência do carvão. Estão sendo construídas duas novas grandes plantas, também a carvão, em Medupi e em Kusile, pela japonesa Hitachi, com financiamento do Banco Mundial e do China Development Bank (CDB), mas que é um enorme custo financeiro para a Eskom, repassando os efeitos para o orçamento publico. Há também denuncias de corrupção na gestão desses contratos, que afetaram significativamente a situação financeira da estatal elétrica.

 

 

A dívida total da Eskom é de mais de 34 bilhões de dólares, que ela não tem condições de pagar, com as agencias de avaliação de crédito reduzindo sua nota para a qualificação de junk.

 

 

Na parte do governo, o déficit fiscal é de 9,8% do PIB em 2020 e a dívida é de quase 80%, com um deficit de transações correntes de 4,6 bilhões de dólares, em um PIB de 282 bilhões de dólares.

 

 

Dessa forma, a África do Sul vive, em dimensões potencializadas, os desafios da atualidade: reduzir as desigualdades econômicas e sociais e modificar sua matriz energética, em direção a uma economia de baixo carbono. Como vários países, os desafios sul africanos envolvem o acesso à energia, reduzindo desigualdades econômicas, promovendo a industrialização e reduzindo o desemprego, ao mesmo tempo em que faz a transição energética. Muitos conflitos se intensificarão na disputa de quais caminhos escolher.

 

 

O governo do presidente Cyril Ramaphosa dividiu a Eskom em três subsidiárias – geração, transmissão e distribuição, – para facilitar sua privatização, provocando uma grande disputa no país. A Eskom tem 90% da capacidade de geração do país, 100% da transmissão e somente 40% da distribuição.

 

 

A direita quer acelerar a privatização, enquanto os movimentos sociais, incluindo os sindicatos, querem a produção de eletricidade mantida sobre controle do estado, com o cancelamento das dívidas da Eskom, consideradas como “ilegítimas”. Os ambientalistas querem banir a produção de eletricidade a partir do carvão, assim como das plantas de energia nuclear, com um vasto programa de transição energética, para criação de infraestrutura verde e com geração de novos postos de trabalho.

 

 

Com a gigantesca taxa de desemprego no país, a reforma da Eskom não pode desconsiderar os seus efeitos sobre as tarifas para os consumidores mais pobres, as pequenas e médias empresas e os seus impactos sobre o emprego.

 

 

Há enormes divergências sobre as origens da crise da Eskom. A corrupção e má gestão tiveram um papel na sua origem, mas muito menor do que a direita sul africana vem apregoando em defesa da privatização. Muito mais importante para a crise foram as decisões tomadas, sob inspiração do Banco Mundial, na lógica da “eletricidade para lucro”, buscando gerir a estatal para resultados de curto prazo. Os problemas derivados dos novos projetos carboníferos de Medupi e de Kusile tiveram efeitos muito maiores na crise.

 

 

Um segundo equívoco da análise da crise é atribuir sua solução a mecanismos de mercado, como no caso das renováveis. Ao contrário, a experiência internacional mostra que sem a participação do estado, a transição energética para renováveis não ocorre de forma significativa.

 

 

A África do Sul está em outro continente, tem uma matriz energética dependente do carvão e uma economia em crise. O Brasil, também com a economia em crise, diferentemente, tem uma matriz energética muito mais limpa, lastreada na hidroeletricidade, possui grandes reservas de petróleo e não depende do carvão. O modelo que se quer aqui implementar na reforma do sistema elétrico e de petróleo é altamente privatizante. Olhar para África do Sul pode nos ajudar a não cometer mais erros.

 


 

 

Jose Sergio Gabrielli de Azevedo é professor titular da UFBA e pesquisador do Ineep.

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