A transformação mundial e a implosão europeia (II)

José Luis Fiori

Por José Luís Fiori.


As premissas em que se fundaram a criação da OTAN e da União Europeia foram abaladas pelo colapso da União Soviética e pela unificação da Alemanha. H. Kissinger, Diplomacy. Simon&Schuster, New York, 2004, p. 820.


Para analisar as consequências geopolíticas da recente “virada” nacionalista, e xenófoba, do sistema político europeu, é preciso hierarquizar os acontecimentos e situá-los numa perspectiva histórica e geográfica mais ampla. Deve-se partir de um ângulo que privilegie como foco de sua análise, antes de mais nada, o passado e o futuro da União Europeia e da Organização do Tratado do Atlântico Norte, duas organizações concebidas depois da Segunda Guerra Mundial como peças complementares de uma mesma estratégia de “pacificação” da Europa, e de “contenção” da União Soviética.

A OTAN foi criada em 1949, por um grupo de onze países, sob a liderança dos Estados Unidos e da Grã Bretanha, visando “manter os russos fora, os americanos dentro e os alemães para baixo”, segundo a célebre definição do seu primeiro Secretário Geral, o Lord e General inglês Hastings Lionel Ismay, que comandou a OTAN entre 1952 e 1957. Nesse período, a Organização começou a se expandir, com a inclusão da Grécia e da Turquia, em 1952, e da Alemanha Ocidental, em 1955. Quase uma década depois de sua criação, nasceu a Comunidade Econômica Europeia, com a assinatura do Tratado de Roma, em 1957, por um grupo de sete países sob a liderança da França e da Itália.

A derrota e o fim da União Soviética, e a reunificação da Alemanha, na década de 90 do século passado, colocaram sobre a mesa das negociações diplomáticas a necessidade de redefinir o papel da OTAN e rediscutir os novos horizontes da União Europeia, depois do Tratado de Maastrich, e sob a liderança da Alemanha unificada. Foi naquele momento que os Estados Unidos tomaram a decisão estratégica de expandir a OTAN, incorporando rapidamente os países da Europa Central que haviam pertencido ao Pacto de Varsóvia, como se fosse quase uma ocupação militar vitoriosa, que fez com que a OTAN passasse a ter 29 Estados-membros. E, ao mesmo tempo, os Estados Unidos pressionaram para que a União Europeia também incorporasse à sua estrutura e à sua economia os novos sócios da organização militar, mesmo que eles não preenchessem os requisitos elementares estabelecidos por Bruxelas.

Do nosso ponto de vista, esta decisão precipitada de ocupar a antiga “zona de influência” da URSS acabou se transformando num “cavalo de Troia”, dentro da OTAN e dentro da UE. A partir daquele momento, nenhuma das duas organizações conseguiu mais manter sua coesão e sua unidade de comando, devido ao aumento descontrolado de seus Estados-membros, à diversidade de seus interesses estratégicos e à imensa desigualdade de suas condições econômicas, demográficas e sociais. Problemas que foram magnificados pelo desaparecimento do inimigo comum, que pudesse ocupar o antigo lugar da União Soviética, e pela explosão imprevista da grande crise econômico-financeira de 2008, que começou nos Estados Unidos, mas acabou atingindo a Europa de forma ainda mais radical e prolongada.

Essa crise econômica polarizou o Velho Continente, e as políticas de austeridade escancararam as desigualdades profundas que já existiam entre os países da União Europeia. Por outro lado, o comprometimento prematuro da OTAN com os conflitos internos da Europa Central foi responsável pelo primeiro envolvimento direto da organização num conflito militar: a Guerra da Bósnia, entre 1992 e 1995; e logo em seguida, na Guerra da Iugoslávia, em 1999. Depois disso, a OTAN interveio nas Guerras do Afeganistão, do Iraque e da Líbia, saindo de seu território original e seguindo objetivos cada vez menos consensuais, e cada vez mais submetidos às necessidades e decisões estratégicas apenas dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha. Essa perda de rumo e divisão interna da OTAN aumentou depois da vitoriosa intervenção militar da Rússia, ao lado da “causa euro-americana”, na Guerra da Síria. E aumentou ainda mais depois da tentativa de golpe de Estado na Turquia de julho de 2016, que foi apoiado por setores da OTAN, e foi derrotado pelo governo de Recep Tayyip Erdogan. Um passo equivocado que reforçou a inclinação nacionalista e conservadora de Erdogan, e aproximou a Turquia da Rússia e do Grupo de Cooperação de Shangai, liderado pela China. Nesse momento, por mais que a OTAN procure ressuscitar a competição militar e o velho conflito ideológico com a Rússia, ela já não conta com a mesma unidade e homogeneidade do tempo da Guerra Fria, nem muito menos com a mesma euforia liberal e “cosmopolita” da década de 90. E muitos especialistas militares já reconhecem abertamente que a OTAN é uma organização militar ultrapassada e incapaz de sustentar uma guerra vitoriosa dentro da Europa, e menos ainda se seu adversário for a Rússia.

É neste contexto objetivo que se deve ler e interpretar a importância dos últimos acontecimentos europeus, aceitando o paradoxo de que o acontecimento mais importante se deu fora da Europa e foi, sem dúvida alguma, a vitória de Donald Trump nas eleições americanas de 2016. Seu discurso nacionalista e de direita deu uma contribuição decisiva e um aval legitimador para o avanço dessa mesma tendência ideológica na Europa. Por outro lado, seu ataque radical a todos os acordos multilaterais de integração comercial, como o NAFTA e o TPP, mas também a Parceria Transatlântica – o TTIP -, que vinha sendo negociada com a UE, era esgrimida por suas elites liberais como uma saída mágica da crise e da retomada do crescimento econômico europeu. Nesse sentido, a deserção de Trump representou um golpe fatal para as próprias elites e para todo o projeto europeu. Os ataques de Donald Trump contra seus velhos aliados da OTAN, entretanto, aumentaram ainda mais a divisão e a falta de credibilidade no poder da aliança militar em que se sustentou a segurança dos europeus na segunda metade do século XX. Coloque-se ainda, nesta lista de desmoralizações, o anúncio do abandono americano dos Acordos de Paris, e a decisão de Donald Trump de não validar o pacto nuclear com o Irã, que segue contando, no entanto, com o apoio integral dos europeus, incluindo Grã-Bretanha e Rússia E, por último, mas não menos importante, do ponto de vista simbólico, a escolha de Trump, da Polônia – situada na extrema direita nacionalista, do espectro político-ideológico da União Europeia – como lugar da sua primeira visita à Europa, logo antes da reunião do G20, na cidade de Hamburgo. Uma escolha que foi lida, obviamente, como uma desvalorização da própria reunião, e uma desatenção intencional à primeira-ministra alemã, ngela Merkel, uma das últimas lideranças liberais e cosmopolitas da Europa.

Por outro lado, dentro da própria União Europeia, o acontecimento político mais importante do último ano, foi, sem dúvida, o plebiscito britânico de junho de 2016, e o seu resultado favorável ao Brexit. Uma decisão inesperada que transformou a Inglaterra num país dividido e governado por um governo fraco e incapaz de levar à frente, de forma consensual, a própria negociação do Brexit com a EU.

Depois dessa decisão britânica, o resultado das eleições alemãs, de outubro de 2017, desfavorável ao governo de Angela Merkel, teve um impacto absolutamente desagregador, deixando a Alemanha dividida e sem governo, e a União Europeia sem sua principal liderança, num momento de extraordinária gravidade sistêmica. Se somarmos a isso a derrota da esquerda europeísta do primeiro-ministro italiano, Matteo Renzi, no referendo constitucional de dezembro de 2016, compreenderemos que a vitória isolada de Emmanuel Macron já não tem condições de reequilibrar o projeto europeu sob a liderança francesa. A França não é mais uma grande potência, nem Macron tem a estatura indispensável, para cumprir o papel carismático do General De Gaulle e de alguns de seus sucessores que conseguiram liderar a Europa antes da unificação alemã. Ou seja, neste momento, a União Europeia está inteiramente acéfala e dividida, e todos os sinais indicam que as duas grandes potências anglo-saxônicas retiraram seu apoio incondicional ao projeto de unificação da Europa e sustentam posições cada vez mais divergentes da União Europeia, com relação ao futuro da OTAN.

Nesse momento, é pouco provável que essa crise degenere numa guerra intra-europeia. Mas uma coisa é certa: a estratégia de integração europeia e da criação da OTAN, concebida depois da Segunda Guerra Mundial, e ampliada depois do fim da Guerra Fria, já não tem mais a mesma força e a mesma legitimidade que teve nos últimos sessenta anos. Nessa hora de fragilização do antigo projeto, muitos pensam que a Alemanha possa ter um papel de resistência e reorganização dos europeus, mas na verdade a Alemanha não dispõe das armas, nem da soberania energética e alimentar, indispensáveis para o exercício do poder hegemônico de uma grande potência regional, dentro deste sistema interestatal capitalista que os próprios europeus inventaram. Esse “buraco negro”, criado pela “implosão” da UE, e pela perda de unidade da OTAN, deve ter consequências dramáticas para o “Mundo Mediterrâneo”, e para os tabuleiros geopolíticos do Atlântico Norte e da Eurásia. Para não falar do seu impacto simbólico sobre a matriz ideológica desse sistema estatal que nasceu na Europa, no século XVI, mas só se transformou num sistema global na segunda metade do Século XX.

Este texto é o segundo da série “A transformação mundial e a implosão europeia” e continua no A transformação mundial e a implosão europeia (III).

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