A Petrobras e a nova política interna de RH: meritocracia ou insegurança para o trabalhador?
No final do mês passado, fevereiro de 2018, a Petrobras anunciou em comunicado interno para os seus funcionários que irá adotar uma nova política para os Recursos Humanos da companhia. Batizada pela imprensa como “cartilha da meritocracia”, as novas medidas foram comunicadas pelo diretor de Assuntos Corporativos, Eberaldo de Almeida Neto, que assumiu o cargo no fim de janeiro, no lugar de Hugo Repsold, atual diretor de Desenvolvimento de Produção e Tecnologia.
De acordo com reportagem publicada pelo Estado de S. Paulo, a carta do diretor afirma que a companhia ainda tem muito a avançar em dois temas essenciais para o seu futuro, “a integração e o mérito”. Sob este ponto, o novo diretor afirmou: “Temos de acelerar esse processo, de forma a intensificar o aumento da eficiência”. Dentre as novas medidas, destacam-se o pagamento de bônus por desempenho individual, criação de banco de talentos interno e alteração do plano de cargos e salários.
As mudanças têm inspiração no modelo de gestão de RH desenvolvido por Vicente Falconi, famoso nos anos 1990 por ser um dos principais idealizadores da chamada “cultura AmBev”, modelo cujos pilares estão centrados no corte sistemático de custos, na obsessão do cumprimento de metas e na meritocracia – recompensada, nos melhores casos, com participação societária. Com o slogan “ao invés de cortar custos, corte desperdícios”, esse modelo de gestão tende a transformar grandes indústrias em pequenos escritórios, buscando maximizar o desejo dos acionistas de retornos sobre seus ativos o mais rápido possível.
A implementação desse tipo de modelo de gestão de RH, centrado na redução do tamanho dos quadros de funcionários (downsizing), gerou resultados financeiros positivos de curto prazo em empresas que o empregaram. Nos últimos anos, as empresas do trio Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira – principais capitães da política de meritocracia de Falconi e sócios no fundo de investimento 3G Capital – fundiram a cervejaria americana Anheuser-Busch com a belgo-brasileira InBev, multiplicando os lucros da companhia, agora AB Inbev, em 10 vezes em menos de um ano; assim como o caso da criação da Kraft Heinz, a segunda maior empresa de alimentos do mundo, também controlada pelo trio de empresários. Com isso, a melhora financeira decorreu da redução dos custos da força de trabalho, num primeiro momento, e do processo de fusão entre essas grandes empresas, reiniciando um novo ciclo de downsizing.
Se por um lado, o desempenho financeiro da “cultura Ambev” é venerado por seus acionistas em virtude do aumento do retorno rápido sobre seus ativos – mesmo que isso possa implicar em redução ou adiamento de investimentos para manter elevado os índices de rentabilidade – por outro lado, essa mesma cultura tem sido alvo constante de críticas no mundo do trabalho. As queixas vão desde as demissões em massa, passando pela extinção de cargos de gerência de nível médio, pelo aumento de casos de adoecimento no trabalho até o crescimento das recorrentes denúncias de assédio moral.
Para se ter uma ideia, as fusões da AB InBev, em 2008, e Kraft Heinz, em 2013, geraram demissões da ordem de mais de 1.000 e de 13.000 funcionários, respectivamente. Logo, cortar postos de trabalho torna-se uma das estratégias centrais (“o mantra”) para alcançar resultados financeiros de curto prazo, deixando para um segundo plano a lógica dos investimentos que poderiam gerar resultados financeiros no médio e longo prazo. Neste sentido, o corte de funcionários na “cultura Ambev” segue a matemática descrita pelo CEO da companhia, Carlos Brito, por meio do esquema 20-70-10: “Em qualquer empresa há os 20% que lideram, os 70% que seguem e os 10% que não fazem nada (…) Os 10%, obviamente, você precisa se livrar deles (…) Eles estão sempre infelizes e sempre reclamando”. Dessa forma, esse modelo de gestão da força de trabalho é desenvolvido para recompensar os 20% melhores funcionários de cada ano com bônus extraordinários, enquanto os 70% medianos ficam restritos a PLR (participação nos lucros e resultados) e os 10% restantes ficam vulneráveis à demissão. A questão é que depois que a empresa supostamente consegue de “livrar” desses 10% “que não fazem nada”, novamente irão aparecer um novo conjunto de 10% de trabalhadores que não querem fazer nada. Quais as consequências dessas medidas para os trabalhadores dessas empresas e a consequente organização empresarial em torno do trabalho?
Meritocracia e insegurança do trabalho
Embora o sucesso empresarial desse modelo seja costumeiramente associado a uma gestão que busca estimular o melhor de cada funcionário, com metas desafiadoras e recompensá-los de acordo com o seu desempenho individual, a verdade não dita durante este processo é que todos os funcionários ficam sujeitos a uma constante tensão entre a obsessão pelos bônus dos melhores e o fantasma da demissão dos piores.
Como a produtividade dos empregados é avaliada por meio do desempenho nas metas de curto, médio e longo prazo da empresa, se porventura as metas não vão sendo atingidas, não é raro que surjam casos de assédio moral. É o caso do vendedor da Ambev de Porto Alegre que era obrigado por seu superior a comprar produtos da empresa para alcançar metas e manter o valor da comissão que ganhava, ou como o caso de um grupo de funcionários da companhia, no Rio Grande do Norte, que recebeu sentença favorável do TST após denunciar situações vexatórias aos que não alcançavam os objetivos definidos, como o impedimento de sentar durante as reuniões, a obrigação de dançar na frente dos outros e de usar camisas com dizeres ofensivos.
Para além do assédio moral, outro fator consequente da cultura de “meritocracia” está no clima constante de competição entre os próprios funcionários da empresa. Um exemplo desse fenômeno é o que ocorreu na Sadia no final dos anos 2000, quando o então presidente-executivo da companhia tentou impor a política de resultados da cultura Ambev.
Apontado por muitos como um dos principais erros estratégicos da companhia, a mudança na cultura administrativa fez com que os superintendentes e gerentes da empresa passassem a reclamar da competição que foi criada entre as unidades. A unidade que se saísse pior perdia os bônus, que eram repassados para as de melhor desempenho. A consequência é que as unidades começaram a maquiar seus resultados para não perder os bônus – e, dessa forma, a competição interna abalou a política de cooperação na qual a companhia se baseara durante décadas.
Todas essas ações nos levam a pergunta: afinal, a cultura da meritocracia valoriza o esforço individual dos funcionários ou apenas serve para potencializar a insegurança do trabalho?
Individualização dos ganhos (e perdas)
Quando se fala em sistema de meritocracia nas empresas, um dos argumentos favoráveis mais frequentes é que o modelo gera uma conduta de ownership (sentimento de proprietário) nos funcionários, segundo afirma um dos sócios da 3G, Marcel Henrique Telles, visto que ajuda despertar no empregado “a cabeça de dono”. Esse argumento, contudo, não é invenção particular do professor Falconi e seus alunos da 3G.
Como nos lembra o sociólogo Luc Boltansky e a economista Ève Chiapello em seu clássico O Novo Espírito do Capitalismo (WMF Martins Fontes, 2009), um dos principais êxitos ideológicos do novo capitalismo é que, ao contrário do que ocorria no período de produção fordista do século XX – no qual a política de salários e benefícios era realizada por intermédio da “integração coletiva e política dos trabalhadores na ordem social e por meio de uma forma do espírito do capitalismo que unia o progresso econômico e tecnológico a uma visão de justiça social” –, agora ele pode ser alcançado a partir de uma organização toyotista do trabalho que é um “projeto que vincula, por um lado, culto ao desempenho individual e exaltação da mobilidade e, por outro, concepções reticulares do vínculo social”.
O que está em jogo no nosso século, portanto, é a desconstrução do mundo do trabalho tal como conhecemos na relação entre patrão-empregado para a substituição de um modelo próximo ao da “cultura Ambev”, em que os melhores talentos (conjunto muito restrito dos empregados) chegam a ser inclusive recompensados com uma porcentagem das ações da empresa, elevando assim a condição dos empregados ao mesmo tempo à estatura de sócios (minoritários, evidentemente).
Como já foi dito, em um cenário corporativo que tensiona o sonho dos bônus e o pesadelo da demissão, mina-se ao mesmo tempo qualquer organização de solidariedade entre os trabalhadores.
A consequência prática disso é a instalação do abismo hierárquico entre executivos e funcionários – em que os executivos, de um lado, defendem e representam os interesses dos grandes acionistas e proprietários do capital, e os funcionários, por sua vez, sem capacidade de intermediação política organizada, encontram-se limitados em termos de negociação com os seus empregadores, restringindo as opções de escolha praticamente ao binarismo entre aceitar ou rejeitar as condições de trabalho impostas.
No contexto nacional, esse cenário pode ainda ser agravado à luz da implementação da reforma trabalhista que coloca trabalhadores da administração indireta, empregados públicos contratados pelo regime celetista, sob a mira das novas possibilidades de precarização do trabalho.
Extinção dos cargos de gerência e obstáculos para a organização sindical
Outro fator digno de nota na transição entre a cultura de gestão do capitalismo fordista para a toyotista (materializado no modelo Falconi no caso brasileiro) é a desobrigação gradual de cargos de gerência de nível médio. No modelo industrial tradicional, a relação entre burgueses e proletários era intermediada por dois agentes principais, personificados na figura do gerente, de um lado, e do sindicalista, de outro. Acontece que, para garantir os ganhos sociais da classe trabalhadora e monitorar as movimentações do patronato, os sindicatos se organizam desde o século passado para defender os interesses das categorias representadas.
Em contrapartida, a fim de defender os interesses do empresariado, especialmente no que tange à produtividade, surge no compromisso fordista a figura do gerente de nível médio, isto é, aquele a quem os ganhos de produtividade e eficiência dos trabalhadores tornam-se uma constante (e custosa) vigilância. É por meio dessa dupla relação que durante as últimas décadas o Ocidente conseguiu estabelecer mecanismos de negociação entre capital e trabalho capazes de trazer ganhos e vantagens para ambos os lados. Contudo, é esse o modelo passa a ser questionado a partir da década de 1980 com a crise de lucratividade das grandes empresas mundiais.
Com esse novo processo de gestão da força de trabalho – que provoca a individualização dos empregados e a redução dos postos da gerência média fordista – ocorre uma diminuição da capacidade de mobilização dos trabalhadores e a redução dos postos de trabalho tradicionais da classe média (emprego industrial e gerência média), afetando negativamente a renda e o emprego do conjunto dos trabalhadores o que configura um processo paulatino de precarização da força de trabalho.
A Petrobras e o retrocesso da década de 1990
No caso da Petrobras, a possível implementação da nova política interna de gestão dos recursos humanos oferece um risco ainda maior, uma vez que o sonho dos bônus e o pesadelo da demissão irão provocar uma desorganização política dos trabalhadores, afetando diretamente os quase 70 mil empregados e as centenas de gerentes da companhia, sem contar com os outros milhares de prestadores de serviços e funcionários indiretos da estatal.
Com o novo modelo de gestão, a empresa adota uma gestão de RH que tem repercutido com má reputação no mercado internacional, sobretudo pela obsessão no corte de custos e na agressividade dos negócios que causam rarefação de garantias e benefícios para o conjunto dos trabalhadores. Por outro lado, o modelo é elogiado por seus entusiastas no mercado financeiro e pelos acionistas minoritários (que estão presos a lógica dos retornos rápidos), no qual o bom desempenho dos indicadores financeiros supostamente justificariam os eventuais “erros de percurso” que recairiam sobre os empregados.
Cabe ainda alertar que a Petrobras tem como seu principal acionista o Estado brasileiro que não necessariamente busca maximizar retornos rápidos, tal como seus acionistas minoritários, em virtude dos seus objetivos públicos (ligados, sobretudo, ao projeto de país e a ordem macroeconômica). Portanto, a função objetiva da Petrobras e do seu modelo de gestão de recursos humanos tem que conciliar os interesses da acumulação interna da empresa e os benefícios para a sociedade brasileira e para seus funcionários. A nova proposta de gestão dos recursos humanos da Petrobras retrata o novo estágio do capitalismo contemporâneo e, sobretudo, a nova forma administrar da atual presidência, que confunde a ideologia do mérito individual com o fardo da insegurança sobre os ombros dos trabalhadores, em um momento delicado para as empresas públicas brasileiras e para o conjunto do mercado de trabalho nacional, e especificamente os empregados da Petrobras.
Por esse caminho quase todos os empregos da empresa caminham juntos (tanto do operacional como do administrativo/gerencial) no sentido da precarização e da intensificação da carga de trabalho com todos os seus efeitos prejudiciais. Apenas alguns poucos (os supostos 20% mais esforçados) alcançarão o sucesso. Nesse sentido, a “cartilha da meritocracia” reforça a posição dos acionistas minoritários em sua busca por maior retorno financeiro, deixando de lado os interesses do principal acionista – o Estado brasileiro – e, sobretudo, dos empregados da empresa que serão transformados em competidores dentro de sua própria equipe. Nesse cenário, em que posição serão classificados os funcionários da Petrobras?
Artigo publicado no Portal GGN.
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Leonel Munise
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