O aumento da tensão mundial e o desafio ao poder naval dos EUA

José Luis Fiori, William Nozaki
Le Monde Diplomatique
Tensão mundial e o desafio ao poder naval dos EUA

Existem cerca de 60 mil navios mercantes em todo o mundo, e 80% do comércio global se dá através do transporte marítimo. Foto: Pixabay

Dois terços da superfície “terrestre” estão cobertos pela água dos mares; a maior parte dessas águas internacionais são “livres” e não obedecem a nenhum tipo de soberania que não seja a do “poder naval” das grandes potências marítimas de cada época e de cada região do mundo. Dois mil anos antes da “Era Comum”, foi o poder naval da Ilha de Creta que conquistou e submeteu o Mar Egeu à civilização cretense, da mesma forma que a marinha fenícia submeteu o Mar Mediterrâneo ao seu império comercial. E o mesmo aconteceu durante a Antiguidade Clássica, com o poder naval de Atenas e do Império Romano, e mais tarde, com o poder marítimo de Veneza, Gênova sobre as rotas comerciais do mesmo Mar Mediterrâneo, que se transformou no cenário da guerra secular entre o Império Otomano e o Império Habsburgo, que culminou com a Batalha de Lepanto, em 1571.

No entanto, todos esses casos e também na expansão marítima chinesa do século XV, não havia uma “autonomia logística” ou separação clara entre as frotas comerciais e os navios de guerra desses povos, impérios e civilizações. Tampouco havia no caso dos navios árabes que dominaram as rotas comerciais do Mar da Índia e do Sul da China, nos séculos XIV e XV. Tudo indica que foram os primeiros Estados nacionais europeus que acabaram desenvolvendo e aperfeiçoando navios preparados para a guerra naval, as famosas “canhoneiras” que abriram o caminho da dominação eurocêntrica dos mares do mundo, que começou com Portugal em 1415, e alcançou seu ápice com a dominação global da marinha dos EUA, depois de 1991, sobre todas as “água livres” dos cinco oceanos e de todos os mares estratégicos do mundo.

Por isso talvez tenham sido os europeus, e em particular os anglo-saxões, que formularam melhor a tese de que o poder naval era uma condição indispensável para a conquista do “poder internacional” por parte de qualquer Estado que se propusesse a se transformar em grande potência. Sir Walter Raleigh, (1533-1603), que também foi marinheiro, financista e pirata inglês, condensou esta ideia em poucas palavras, olhando para o Oceano Atlântico e afirmando que, “quem tem o mar… tem o próprio mundo”. Muito tempo depois, do outro lado do Atlântico, o almirante norte-americano Alfred Mahan – conselheiro do presidente Theodoro Roosevelt – ecoaria esta mesma tese ao propor que os Estados Unidos fortalecessem seu poder naval olhando para o Oceano Pacífico, como primeiro passo do projeto de construção de um poder global norte-americano. Na mesma linha, os grandes geopolíticos anglo-americanos, Halford Mackinder e Nicholas Spykman, contribuíram para este mesmo projeto, sublinhando a importância também do controle do Mar Báltico e do Mar Negro, e dos Golfos Pérsico e Arábico.

Depois das potências ibéricas, a supremacia do poder naval britânico se impôs em todo o mundo durante os séculos XVIII e XIX, e só foi superada pelo poder naval norte-americano na segunda metade do século XX. Assim mesmo, foi só depois do fim da Guerra Fria que a marinha dos EUA logrou estender seu controle monopólico sobre todas as “águas livres” do mundo. Foi o momento em que a Marinha Americana redefiniu seus próprios objetivos no novo contexto internacional, em dois documentos datados de 1992 e 1994, onde consta que “nossa estratégia mudou seu foco de uma ameaça global para um foco nos desafios e oportunidades regionais. No momento em que desapareceu a perspectiva de uma guerra global, entramos num período de enormes incertezas em regiões críticas para nossos interesses nacionais”.

Hoje existem cerca de 60 mil navios mercantes em todo o mundo, e 80% do comércio global se dá através do transporte marítimo; essas cifras são ainda mais expressivas quando se trata das relações comerciais entre os países mais ricos mundo. Mas nestes 30 anos depois do fim da Guerra Fria, o panorama do mundial mudou completamente com o deslocamento do centro dinâmico capitalismo para Ásia, e com o aparecimento de dois novos polos de poder naval – a China e a Rússia – que já disputam com os Estados Unidos o controle dos oceanos e mares asiáticos, mas também da região do Ártico, e o próprio Oceano Pacífico.

Contexto naval

Em estudo recente, a National Interest publicou um ranking elencando as maiores marinhas do sistema mundial, e a marinha norte-americana aparece em primeiro lugar, seguida por China e Rússia. A Marinha dos EUA, a US Navy, possui hoje 10 porta-aviões, 9 navios de desembarque, 17 fragatas, 22 cruzadores, 62 destróieres e 72 submarinos. Já que a Marinha da China, a People Libertation Army Navy (PLA Navy), possui 1 porta-aviões, 3 embarcações anfíbias, 25 destróieres, 42 fragatas, 8 submarinos nucleares e cerca de 50 submarinos convencionais. Em terceiro lugar aparece a Marinha Russa, a Russian Navy, que herdou a maior parte das embarcações soviéticas que estão sendo modernizadas e, além disso, possui 1 porta-aviões, 5 cruzadores, 13 destróieres e 52 submarinos.

É no contexto dessa nova correlação de forças navais no mundo, dentro da permanente luta das grandes potências pelos recursos estratégicos do planeta, e, em última instância, pelo “poder global”, que se deve entender a recente “escalada militar” das grandes potências, em plena pandemia do novo coronavírus.

Mas esta movimentação recente não caiu do céu, e se inscreve numa disputa que vem se acirrando a cada dia que passa, sobretudo entre EUA e China, e entre a Rússia e EUA.

Já faz algum tempo que os EUA vêm intensificando seus exercícios navais no Atlântico e no Mar do Caribe. Destacam-se suas manobras recentes de cooperação entre navios de guerra e navios cargueiros, com a simulação de transporte de material bélico, um tipo de exercício que não se realizava desde o fim da Guerra Fria. Por outro lado, novos submarinos têm sido somados à IV Frota Naval, e no Mar do Caribe tem havido intensa movimentação, com o monitorando de embarcações venezuelanas e iranianas, feito com o objetivo de aumentar a pressão contra o governo de Nicolás Maduro. A frota naval americana também tem realizado ensaios em outros cenários, como foi o caso recente do Oceano Glacial Ártico e do Mar de Barents, mas também do Mar Báltico, onde inclusive foram utilizados bombardeiros supersônicos com armas nucleares. E o mesmo tem acontecido no Mar do Japão e no Mar do Sul da China, devendo-se sublinhar a importância do anúncio americano da instalação de bombas nucleares de “baixa intensidade” nos mísseis Trident utilizados pelos 14 submarinos USS Tennessee de sua frota submarina.

Essa investida militar dos EUA, sobre o Pacífico e sobre o Ártico, entretanto, não tem ficado sem resposta naval da parte da China e da Rússia. A China estabeleceu como meta estratégica completar a modernização de seu Exército Popular de Libertação Nacional até 2035, mas já faz tempo que o poder naval passou a ocupar lugar central nas preocupações estratégicas chinesas. Nos últimos anos, a PLA Navy construiu mais navios de guerra, submarinos, anfíbios e barcos de apoio do que o total da frota britânica, e hoje o poder naval da China já representa uma ameaça real às tropas norte-americanas do Sul do Pacífico, em particular no estreito de Taiwan. Em 2013, a China começou a construção de ilhas artificiais, como é o caso das ilhas Spratly e Paracelso, numa região que, além de ser uma via crucial do comércio marítimo internacional, também possui grandes reservas de recursos naturais estratégicos, numa região que é disputada também por Malásia, Vietnã, Taiwan, Filipinas e Brunei, países que contam com o apoio norte-americano.

A Rússia, por sua vez, tem investimento pesadamente na corrida armamentista pelos recursos estratégicos do Círculo Polar Ártico. Com esse objetivos, a Marinha Russa tem modernizado seus navios quebra-gelo pesados, médios e leves, e avança aceleradamente no projeto de construção do quebra-gelo mais potente e pesado do mundo – o 10510 Líder – junto com a construção de um novo navio nuclear – o Arkitika – que deverá operar no perímetro polar. Além disso, A Rússia se propõe comissionar ainda em 2020, seus novos submarinos diesel-elétricos do projeto 6363 Varshavyanka, junto com a construção de seis grandes submarinos diesel com mísseis de cruzeiro Kalibr-PL. Além disto, a Marinha Russa colocou em operação esse ano, um novo submarino nuclear na região do Ártico, onde vários países adjacentes também estão reforçando e modernizando suas infraestruturas militares.

No Atlântico como no Pacífico, no Ártico como no Caribe, ou no Golfo Pérsico, esta escalada militar envolve uma disputa por recursos naturais estratégicos, com destaque especial para o petróleo, que seguirá sendo ainda a fonte de energia fundamental do sistema econômico e da infraestrutura militar dessas grandes potências, pelo menos durante boa parte do século XXI. Por isso, os estreitos marítimos que são rotas de circulação destes recursos estratégicos, e do petróleo, em particular, têm-se tornado objeto de crescente tensão. Incluem-se neste caso o Estreito de Ormuz (chave para os EUA) por onde passam 19 milhões de barris de petróleo, provenientes de Irã, Kuwait, Bahrein, Catar, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita. Mas também o Estreito de Bab el Mandeb (chave para a África), que está situado entre a África e o Oriente Médio, ligando o Mar Vermelho ao Golfo de Aden à Ásia, e que é uma espécie de “antessala” do petróleo que depois atravessa o Canal de Suez, ou que é escoado pelo oleoduto SUMED. Pelo Canal de Suez passam 5,5 milhões de barris por dia, a maior parte na direção do Oriente Médio ou da Europa. E o oleoduto SUMED (Egito) é a única rota alternativa ao Canal de Suez, para transportar petróleo bruto do Mar Vermelho para o Mar Mediterrâneo.

No entanto, é no Estreito de Malaca e no Mar do Sul da China onde se concentra hoje a maior disputa naval do mundo. Por aí circulam hoje 64% do comércio marítimo global, e fluem 16 milhões de barris de petróleo por dia, a maior parte na direção à China. Esta região está sob o controle naval da Frota do Pacífico dos Estados Unidos, a principal frota naval da marinha norte-americana, cujo quartel-general está em Pearl Harbor, e que conta com cerca de 200 navios, 2.000 aviões e 250.000 homens. É uma região também disputada por muitos outros países, em particular pela China, que vem concentrando um poder de fogo que cresce de forma geométrica exatamente onde os Estados Unidos têm sua maior frota naval. Por isto, se pode dizer com toda certeza que o Estreito de Malaca é hoje a região naval onde se situa o principal termômetro que mede a variação da intensidade da competição naval entre as grandes potências que disputam a soberania marítima das “águas livres” do mundo.

Resumindo: depois de 1991, os EUA monopolizaram os mares do mundo. Mas hoje, trinta anos depois, esse monopólio está sendo ameaçado pela China e pela Rússia. Por fim, é bom lembrar que muitos analistas e historiadores consideram que o desafio alemão ao poder naval britânico foi o estopim da “guerra hegemônica” que sacudiu o mundo entre 1914 e 1945.


[1] Cit in FIORI, J. L. História, estratégia e desenvolvimento. São Paulo: Boitempo, 2014, p.142.

(*) José Luis Fiori é Professor titular do Programa de Pós-graduação em Economia Política Internacional (IE/UFRJ), e do Programa de Pós-Graduação em Bioética e Ética Aplicada (PPGBIOS/UFRJ), Coordenador do GP do CNPQ, “Poder Global e Geopolítica do Capitalismo”, e do Laboratório de “Ética e Poder Global”, do NUBEIA/ UFRJ; pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (Ineep).

(**) William Nozaki é Professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e diretor técnico do Instituto de Estudos Estratégicos do Petróleo, Gás e Biocombustíveis (Ineep).

Artigo publicado originalmente em Le Monde Diplomatique.

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